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Mostrando postagens de 2007

Mensagem de Natal? Uma crônica de José Saramago

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Por Pedro Fernandes  Às vésperas da data que o cristianismo instituiu para celebrar o nascimento de Jesus, pego de uma crônica de José Saramago que está publicada em Deste mundo e do outro  (1997). Este livro reúne textos que o escritor português publicou entre os anos 1968 e 1969 no jornal A Capital . O texto não está marcado pela data em registro, exceto por uma menção que finda por ser um dos seus ponto motriz; e, claro, sua importância para o momento, embora também o transcenda, repousa na reflexão que nos suscita sobre as disparidades do sentido humanizador, sempre convocado sob a luz do espírito natalino. Fica o texto como mensagem de Natal. * A Neve Preta Bem sei que estamos fora da estação: o Inverno já lá vai, temos agora aí o calor, a praia, as sombras das grandes árvores, o sol duro que nos amolece, as tardes apetecidas, as noites mornas que ondulam como pesados e macios veludos negros. Falar de neve em Junho mostra uma lamentável falta de sentido da oportunidade. Mas, tal c

Cora Coralina, de Goiás

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Por Carlos Drummond de Andrade Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina. Cora Coralina, tão gostoso pronunciar esse nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar, surdinando música de sereias antigas e de Dona Janaína moderna. Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é por exemplo, uma estrada. Na estrada que é Cora Coralina passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje. O verso é simples, mas abrange a realidade vária. Escutemos: “Vive dentro de mim/ uma cabocla velha/ de mau olhado,/ acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo”. “Vive dentro de mim/ a lavadeira do rio vermelho. Seu cheiro gostoso dágua e sabão”. “Vive dentro d

O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago

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Por Pedro Fernandes Edição brasileira de O evangelho segundo Jesus Cristo  publicada pela Companhia das Letras Se tem uma coisa que tem intrigado muita gente que ainda se vê enfiada nos cânones religiosos é mexer com o sagrado; lembro-me bem de um congresso que fui neste ano e falei sobre as personagens Deus e o Diabo dessa obra-prima da literatura portuguesa que é  O Evangelho segundo Jesus Cristo , de José Saramago, e um senhor da platéia que assistiu aos meus quinze mirrados minutos de apresentação... Saramago só não recebeu o nome de Deus noutras conversas rápidas que tive com ele, depois, no alojamento... Mas oh, tem uma coisa, cá pra nós,  O Evangelho  deveria mesmo ser partilha nas homilias e cultos religiosos cristãos porque nunca li (e olha que já li os quatro Evangelhos da Sagrada Escritura) obra com real beleza e proximidade à figura do Cristo tão exorcizada do discurso religioso cristão: o Cristo antes de sê-lo. Um Jesus humano e porque humano mais convincente e i

Joseph Conrad. As raízes do humano

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Por Vargas Llosa Ilustração: Tim Liedtke  1. O Congo De Leopardo II Em uma viagem de avião, o historiador Adam Hochschild  encontrou uma citação de Mark Twain, na qual o autor de As aventuras de Huckleberry Finn assegurava que o regime imposto por Leopoldo II, rei dos belgas que morreu em 1909, ao Estado Livre do Congo (1885 a 1906), forjado por ele, havia exterminado entre cinco e oito milhões de nativos. Mordido pela curiosidade e por um certo espanto, ele iniciou uma investigação que, muitos anos depois, culminaria no livro O fantasma do rei Leopoldo , notável documento sobre a crueldade e a cobiça que impulsionaram a aventura colonial européia na África, e cujos dados e comprovações enriquecem extraordinariamente a leitura da obra-prima de Joseph Conrad, O coração das trevas , que se passa naquelas paragens justamente na época em que a Companhia Belga, de Leopoldo II — que deveria figurar, junto a Hitler e a Stálin, como um dos criminosos políticos mais sa

Manuel Antônio de Almeida

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A obra de Manuel Antônio de Almeida está circunscrita no período que a histografia literária tem concebido como Romantismo. Acontece que, como é recorrente em quase (para não dizer em todas) as épocas literárias que importamos dos moldes europeus para uma compreensão sobre a formação de nosso cânone, a filiação é um pouco degenerada. E os motivos são vários: desde sempre, os criadores, mesmo aqueles ainda extremamente apegados à dicção europeia, acabaram por imprimir traços únicos e variáveis só possíveis de adquiridos pela vivência num contexto como o nosso. Acontece que, no caso do autor de Memórias de um sargento de milícias , essa diferenciação fica ainda mais evidente. E, para isso terá contribuído um dos preceitos fundamentais da estética à qual filiam: a prevalência da individualidade e da liberdade criativas. É claro que o leitor encontrará na obra desse escritor estreita relação com os modos de ver de outros escritores europeus anteriores: o interesse pela história

Myriam Coeli

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Entre sombra e pedra desfolhada rosa solitário espinho que, alado e mudo, perpassa o tempo. (O tempo do tempo que tempo já era). Myriam Coeli É uma escritora potiguar de fundamental importância ao cenário da literatura do Rio Grande do Norte. Nascida em Manaus, em 19 de novembro de 1926, foi trazida ainda criança para São José do Mipibu, cidade interiorana do estado.  Estudou em Natal e no Recife; e fez os estudos finais em Espanha onde diplomou-se pela Escola Oficial de Jornalismo de Madrid. Com isso foi a primeira profissional mulher no jornalismo a ocupar o devido lugar trabalhando em jornais como Diário de Natal , Tribuna do Norte e A República . Publicou sua primeira obra em 1961:  Imagem virtual , escrito em parceria com o seu marido Celso da Silveira; em 1980, saía do prelo o segundo título, Vivência sobre vivência e Cantigas de Amigo (1981), este último o mais conhecido e o terceiro, Inventário . Morreu em 1982, vítima de um câncer. Crí

O “show” de Truman

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Por Maruja Torres Truman Capote na varanda da casa de tijolos amarelos na Rua Willow, Brooklyn Heights, 1958. Truman Capote foi um dos melhores escritores de sua geração; alguém dotado de ouvido infalível para captar a musicalidade da língua inglesa e para reproduzir a fala do seu povo. Soma-se a isso a magistral habilidade com que mistura o obscuro e o poético, a angústia que serpenteia sob as águas mansas e ainda a grandiosidade descritiva da sua prosa. Era um gênio, como ele mesmo próprio se classificou (a modéstia não foi seu forte), depois de alardear que também era alcoólatra e drogado. Mas estas duas características nem sempre estiveram nele, embora sim a pulsão com que acabaria por se entregar a tais vícios a fim de suprir o medo de ser abandonado, que começou em sua terrível infância e não o deixou até o fim da vida. Na verdade, Capote, que nasceu em Nova Orleans em 1924 e morreu em agosto de 1984 de lenta e repentina overdose de licores e fármacos, veio a este