No Pantanal com J. G. Rosa

Por Manoel de Barros



Andamos para ver a roça de mandioca. Tatu estraga muito as roças por aqui. Há muito tatu, Manoel? Eles fazem buraco por baixo do pau-a-pique, varam pra dentro da roça, revolvem tudo e comem as raízes. Remédio contra tatu é formicida. Fura-se um ovo, bota formicida dentro e esquece ele largado no solo da roça. Rolinha passa por cima e nem liga. Mas o tatu espuga, vem e bebe o ovo. Sente a fisgada da morte num átimo e sai de cabeça baixa, de trote para o cerrado, pensando na morte... Homem é igual, quando descobre sua precariedade, abaixa a cabeça. Já sabe que carrega sua morte dentro, seu formicida. Essa é nossa condição - Rosa me disse. Falou: eu escondo de mim a morte, Manoel. Disfarço ela. Lembra o livro do nosso Alvaro Moreira? A vida é de cabeça baixa? Deveria de não ser - ele disse. Chegamos perto da metafísica. E voltamos. Havia araras. Havia o caramujo perto de uma árvore. Ele disse: Habemos lesma, Manoel. Eu disse: caramujo é que ajuda árvore crescer. Ele riu. Relvas cresciam nas palavras e na terra. Rosa escutava as coisas. Escutava o luar comendo árvores. E, como é o homem aqui, Manoel? Eu fui falando nervoso. Ele queria me especular. O homem se completa com os bicos - eu disse -, com os marandovás e com as suas águas. Esse ermo cria motucas. Por aqui não existem ruínas de civilizações para o homem passear dentro delas. Só bichos e águas e árvores para a gente ver. Não têm coisas de argamassa, ferragens destripadas do deserto, essas coisas que aparecem nos relentos da Europa. Aqui é brejo, boi e cerrado. E anta que assobia sem barba e sem banheiro. Rosa me olhou de esguelha. E árvore, Manoel, o nome de algumas, você me dará? Aqui o que sabemos é por instinto e por apalpos. Não é como o Senhor faz com as palavras. Ele me olhou mais ao fundo. - Como sabe que eu mexo com as palavras? Você é daqui, Manoel? Sou pantaneiro de chapa e cruz. Sou puro de corixo e de vazantes. Ele quis me descobrir. Me empedrei. Quer saber qual o nome que tal árvore tem aqui. Quer saber o nome daquele passarinho que pula no brejo, cor de café, e como é que ele canta. A gente só sabe essas coisas por eflúvios, por ruídos, pelo faro. Mas sempre se pode errar pelo faro. Pensa que vai dar na guabiroba e dá no guaviral. A gente não sabe o cultural desses entes de folha e de asas. Só se sabe o natural. O que se vê. A cor do ovo que botam, o duro do vôo, a casca, a resina, os excrementos. Aqui toda árvore a gente chama de pé-de-pau. Menos aquelas de fazer cerca, madeira de lei, vinhático, aroeira, piqui, piúva. E mais aqueles de onde se tira medicina: para-tudo, nó de cachorro, mangava brava. E mais as qualidades de mel que dá no pé-de-pau: jati, manduri, borá, d'oropa, sanharão, mandaguari, arichiguana. E passarinho, Manoel? Rosa me especulava por trás do couro, como quem sonda urubu. Queria saber de um tudo. De avoador, eu disse, só urubu, garça, cracará - esses pássaros grandes. O resto quase é inominado. Passarinho pequeno é passarinho à-toa. Rosa sabia essas coisas, só estava me sondando. Falei para ele. Isso é como a gente não saber o nome de todas as pessoas que vão atravessando o Viaduto do Chá. Rosa estrelou sua risada. É isso mesmo, Manoel! É tanta gente que não se sabe o nome. E passarinho é a gente daqui. E o tordo, qual é a letra do canto que ele canta? A música eu sei de cor, mas aletra eu não sei - ele disse. A letra é assim: Primo com prima não faz mal, finca finca... Oi tordo erótico, Manoel. Os de lá de Minas têm mais compostura, ele disse. E sapo, lá tem demais?, eu perguntei. Tem quase menos que por aqui, ele disse. Mas os poucos que tem lá tem lá cantam mais bonito. Queria me desafiar. Eu disse: Mas, Rosa, pode reparar uma cosia: no canto do nosso sapo tem uma curva luminosa... Rosa gostou. Nossa conversa era desse feitio. Ele inventava coisas de Cordisburgo. Eu inventava coisas do Pantanal. Rosa andou por aqui em junho de 1953. Já havia publicado Sagarana e estava consagrado. Não tinha fim a sua curiosidade. Dava ares de um rei, às vezes. Mas o rosto merecia anjo. Eu tinha informações de seu gosto por línguas, idiomas. Traçava até línguas arrevezadas: checo, aramaico, sei lá. Queria saber guarani. Foi no caderno, virou, virou, me perguntou. Manoel, que quer dizer não tem nhamonguetá nem bugerê. Tentei traduzir. Quer dizer: não tem conversa nem vira de lado. Isso é guaranês, falei de orelhada. Mas Rosa quer saber a origem, quer saber a explicação de tudo. Rosa se aplica nas palavras com o fundo indagar. Fica imaginando. Recorre a outras línguas de raízes tupi. Faz desenhos de letras no caderno. Excogita. Disse pra ele que o Pantanal quase teve um dialeto. Muitos anos os moradores ficaram isolados.  Isto se fez uma ilha lingüística. Palavras sofriam erosões morfológicas ou semânticas. Outras eram criadas. E algumas sumiam por serem de cidade. Por exemplo, Manoel, uma palavra que sofreu erosão? Aqui se mata uma capivara para comer e a primeira coisa que se faz é tirar da capivara a misca. A misca é uma catinga, um cheiro forte localizado no lombo da capivara. Muitos anos vivi com essa palavra, e agora sei. Rosa disse: vem de almíscar, né? Sim. vem de almíscar. Almíscar sofreu uma erosa nas duas margens e virou misca. De palavra o Rosa sabe tudo. E me explicou: almíscar é uma substância odorífera... etc. E por que não se completou o dialeto, Manoel? A ilha não é mais ilha. Agora caminhão atravessa, fordeco, avião. Mascate chega de carro, e o rádio desemboca músicas e falas estranhas. Pode me dizer alguma expressão que ficou do dialeto, alguma invenção? O verbo clarear, por exemplo. Aqui ele tomou um outro significado. Assim: clarear de uma pessoa, é fugir dela. A expressão vem de quando, nas corridas de cavalo, aquele que vai na frente, avança mais de um corpo sobre o outro. Se avança de um corpo, o cavalo faz luz dele para o outro. Quer dizer: clareia do outro. Para dizer que se deixou a namorada se fala: clareei dela. Rosa acha que obedeceram as leis de formação de um dialeto. E o folclore, Manoel? Pantanal tem pouco folclore, pois se trata de pouso relativamente novo. Há quem misture folclore com bichos, coisas exóticas. Aqui não há nada de exótico. Turista não precisa vir atrás de exótico. O que tem aqui tem em toda parte. Mas de folclore que é outro departamento, tenho um amigo, Neto Botelho, que sabe das cosias, que informa sobre o nosso monumento nesse área que é o cavalo. Cavalo é nosso enfeite, nosso instrumento de trabalho, nosso meio de transporte, nosso amigo, nossa arte. Com ele se ganha o pão, com ele se vai namorar. Ofereço ao Rosa um poema do Neto Botelho sobre um cavalo que teve:

"Tive um cavalo ruano
De nome Balança-os-Cachos
De cheirar e mandar guardar
Cavalo de confiança
Pegava em quarenta metros
Galardão de cola e ancas
Um ente desanormal
Coisa de prateleira
Ventena como o fedor
Não foi ensebar serviços
Nem tem queda pra cangas
Pastor de primeira instância
Cavalo de putear delegado
Livre como as vertentes
Podia até lavar louças
Leve de patas que era
Só faltava ir ao cinema."

Rosa tomou nota. Gravou na caderneta. Anos depois fui ver na Casa de Ruy Barbosa, onde se fazia exposição dos cadernos de Rosa, mas lá não encontrei o poema. Aliás vi poucas notas da viagem de Rosa ao Pantanal. Quis saber, ele, ainda, dos meus receios sobre as confusões com o exótico. Falei, falei demais, espichei. Dei a entender que se estava olhando o Pantanal só como coisa exótica. Um superficial para só se ver e bater chapa. Mesmo os que cantavam em prosa e verso ficavam enumerando bichos, carandá, tuiuius, jacarés, sariemas; e que essa enumeração não transmite a essência do Pantanal, porém só a sua aparência. Havia o perigo de se afundar no puro natural, etc. Precisamos de um escritor como você, Rosa, para frear com sua estética, com a sua linguagem calibrada, os excessos de natural. Temos que enlouquecer o nosso verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a público o seu Com o vaqueiro Mariano, um livro intenso de poesia e transfigurações. Dele recebi um exemplar dedicado. - Olha aí, Manoel, sem folclore nem exotismos - como você queria. Só vi Guimarães Rosa outras vezes na Divisão de Fronteiras de Itamaraty, e em sua posse na Academia, três dias antes de morrer. A morte que levava no corpo. E que nem pôde dessa vez esconder-se dela... Esse gênio eu conheci e tenho orgulho disso.

* Excerto de "Pedras aprendem silêncio nele", entrevista concedida pelo poeta Manoel de Barros a Turiba e João Borges para a revista Bric-à-Brac e posteriormente publicada em sua Gramática expositiva do chão (poesia quase toda) na seção "Conversas por escrito (entrevistas: 1970-1989)".  

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