Jorge de Lima





o mar se esvai, aquele monte desaba e cai silentemente. Bronzes diluídos já não são vozes, seres na estrada nem são fantasmas, aves nos ramos inexistentes; tranças noturnas mais que impalpáveis, gatos nem gatos, nem os pés no ar, nem os silêncios. O sono está. E um homem dorme.
(Jorge de Lima In Invenção de Orfeu, canto III, fragmento)


A recepção da obra de Jorge de Lima é tão múltipla quanto a sua produção. Enquanto para os admiradores confessos se trata de um dos melhores poetas da literatura brasileira, para os não-iniciados o autor de Invenção de Orfeu ainda é um mistério a decifrar.

Quando o assunto é revirar a cumbuca onde fervem os textos de Jorge de Lima, descobre uma colossal possibilidade de leituras, já que na literatura do autor convivem o antigo e o moderno, o regional e o universal, a tradição e o novo, o banal e o sublime. A obra é também o reflexo de um artista em constante mutação, que experimentou estilos diversos, como o parnasianismo, o regional, o barroco, o religioso, e, por fim, a consagração épico-biográfica de Invenção de Orfeu, de 1952, lançada um ano antes de sua morte.

Jorge de Lima parecia ter oito braços. Além de poeta, romancista, biógrafo, ensaísta, foi médico, político e artista plástico. Quando se mudou de Alagoas para o Rio de Janeiro, em 1930, montou um consultório na Cinelândia para onde acorriam intelectuais e escritores da época, transformando o local numa arena de debates literários. Reunia-se lá gente como Murilo Mendes, Graciliano Ramos e José Lins do Rego.

Se tivesse sido apenas poeta, teria deixado uma produção e tanto a ser apreciada e desvendada em diversos tempos. Há quem diga que se tivesse escrito uma única obra – a suprema Invenção de Orfeu – teria deixado trabalho suficiente para leitores e críticos se imbricarem num monumental quebra-cabeça.

“O molde da sua poesia é a perquirição da própria arte, a interrogação sobre o mistério de querer alcançar uma espécie de reino – o poético. Como um alquimista da modernidade, o autor busca elementos-palavras que se fundem, metamorfoseiam-se e se fazem num tempo contínuo, nascido da fusão da própria espaciotemporalidade.

[...] Começar a ler a obra de Jorge de Lima é entrar num jogo de espelhos. Espelhos de variados tamanhos, côncavos, convexos, dispostos de tal maneira que nos envolvem, mas sempre exibindo autonomia na composição dos modelos que se estruturam. Algo que nos leva a já não sabermos em que espelho nós somos, uma vez que as fragmentações e as distorções dos modelos projetados pressupõem a necessidade de vermos em todos e não nos aceitarmos em nenhum.”
(Sílvia Regina Pinto, professora de Teoria Literária da UERJ)

Invenção de Orfeu é, de fato, uma obra que merece atenção à parte. Ambicioso trabalho de “colagens”, no qual o autor parafraseia trechos de clássicos como A divina comédia, de Dante Alighieri, Paraíso perdido, de John Milton, Eneida, de Virgilio, e Os lusíadas, de Camões, poema em que é um enorme desafio para qualquer leitor.

“Nesse texto imenso, extremamente complexo e erudito, gerado como fotomontagem, isto é, pelo recorte e cruzamento de idéias, palavras, imagens, alegorias, sensações e toda sorte de manipulações com a palavra, com o espaço, com o tempo, como achar um fio de Ariadne que garanta não só a entrada no labirinto, mas também a saída minimamente honrosa? Invenção de Orfeu é esse desafio"
(Sílvia Regina Pinto, professora de Teoria Literária da UERJ)

“O verso de Jorge de Lima reúne uma espantosa galáxia de virtudes poéticas, como o ritmo, a inteligência métrica, a sensualidade cromática, a plasticidade visual da fanopéia, a magia verbal, a musicalidade, o assombro de imagens e metáforas de um permanente diálogo entre a tradição e a modernidade, o que faz dele um dos mais insólitos herdeiros do nosso Barroco, esse Barroco que reside nas entranhas da sensibilidade e da alma brasileiras.”
(Ivan Junqueira, poeta)

Apesar de tentar candidatura seis vezes à cadeira na Academia Brasileira de Letras, Jorge de Lima não conseguiu. O que para o poeta Ivan Junqueira foi um dos maiores erros cometidos pela Academia. Para ele a poesia de Jorge não pode ser considerada marginal, tampouco menor, haja vista que seu maior poema, o Invenção de Orfeu, foi excepcionalmente bem recebido pela crítica e pelo público e, até hoje, transcorridos mais de cinquenta anos de sua publicação, não há poeta brasileiro que dele não se lembre.

Quanto a não ter alcançado a mesma fama que desfrutam Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, isso explica em parte porque a obra de Lima, muitas vezes hermética e comprometida com o catolicismo, foi menos aberta do que a daqueles poetas.

De fato, a filiação religiosa do autor, expressa em Tempo e eternidade (1935), A túnica inconsútil (1938) e Anunciação e encontro de Mira-Celi (1943), pode ter dificultado seu acesso à celebridade, já que uma boa parte da crítica costuma torcer o nariz quando Deus entra na literatura.

Há necessidade de tua vinda, Mira-Celi:
Milhares de ventres virginais te esperam
através de séculos e séculos de insônia!
Basta de te entremostrares:
Nós já te pressentimos demais
em certos momentos de mistério
ou sob algumas aparências obscuras.
Há lábios entreabertos esperando:
São os meus irmãos,
a quem anunciei que tu virias.
Há palavras de fogo, semi-apagadas;
há janelas desertas, já fechadas;
há ausências inexplicáveis, gestos mortos;
há lagos estagnados sob grifos de luto.
Quando vieres, as árvores ocas darão flores,
e teu esplendor acenderá pela noite dormente
os olhos entreabertos dos semblantes amados.
(Jorge de Lima In Anunciação e encontro de Mira-Celi, fragmento 3)

Há quem discorde, porém, da hipótese de a questão religiosa ter atrapalhado sua visibilidade, acreditando que a consagração do escritor modernista se faz no espaço do Cult.

“Como poeta religioso Jorge de Lima nunca produziu nada com a qualidade de um Murilo Mendes em Poesia liberdade. O lugar canônico de Lima vem dos sonetos, da sua primeira poesia modernista e, sobretudo, de Invenção de Orfeu."
(Italo Moriconi, poeta e professor de Literatura Brasileira da UERJ)

A multiplicidade de Jorge de Lima está ainda na questão temporal. O autor pertence a todas as épocas na medida em que, mesmo se reportando a um tema ou a um situação específica do século passado, consegue alcançar a perenidade ao tocar em injustiças sociais que mudaram pouco desde o início da civilização.

“Jorge de Lima escreve sobre as grandes dúvidas de todos nós, da miséria humana, da tentativa e superação de nossas amarras e de nossas limitações. Ele é o maior poeta brasileiro de todos os tempos.”
(Claufe Rodrigues, jornalista e poeta)

Éramos seis em torno de uma esfera
armilar. Um candeeiro antigo diante
de seus olhos. E de súbito se gera
o vácuo na memória bruxuleante.

Procuro relembrar-me: seu nome era...
não sei se Abigail se Violante.
Sei que nos seres houve longe espera:
que ela não fosse estrela distante

Passa-se o século, ignoro outros aspectos
do minuto que passa e do milênio.
Indo a uma feira vi num palco um gênio

Com uma esfera armilar cheia de insetos
cedê-la a cinco crianças em disfarce
e houve uma delas que se pôs a alar-se.

Notas

Para saber mais sobre Jorge de Lima: Leitura de Invenção de Orfeu, organizado pela professora Sílvia Regina Pinto, publicado pela Editora Brasília; site Jornal de Poesia.

Há uma coletânea da obra de Jorge sendo relançada: Pela Record – Poemas negros, Invenção de Orfeu, Anunciação e encontro de Mira-Celi, Poemas; Pela Civilização Brasileira – A mulher obscura, Guerra dentro do beco, Calunga, O anjo.

Fontes 

CLÁUDIA, Nina. Jorge de Lima não é para poucos. In: Revista Entrelivros, ano 3, n. 32, p. 60-63; Jornal de Poesia; LIMA, Jorge de. Obra poética. Edição completa, em um volume, org. Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro: Getulio Costa, 1950. p. 467-72.



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