Zé Saldanha: memória viva do cordel

Por Sérgio Vilar

Zé Saldanha. Foto: Alexandro Gurgel.


“Sou um dos nordestinos, magro, baixinho e sisudo, mas que tem honra e méritos no Nordeste de Canudos; nas terras de Gonzagão, Antônio Silvino e Lampião, de Padin Ciço e Cascudo”. A autodefinição, do cordelista José Saldanha de Menezes Sobrinho não poderia ser feita de outra forma, senão através de um cordel. Sertanejo de alma e vida, o poeta de 87 anos - hoje 90 anos - mantém viva a tradição dos livretos que contam a sina do nordestino e as epopéias do Sertão. Distante 70 anos da publicação de seu primeiro cordel, Saldanha ainda guarda a voz altiva de quem declamava poesia nas feiras interioranas, nos tempos em que “o cordelista era muito mais querido pelo povo do que Roberto Carlos é hoje em dia”.

Zé Saldanha – nome que assina em seus cordéis – [...] nasceu em 23 de fevereiro de 1918, na fazenda Piató, município de Santana dos Matos. Naquele início de século, os tempos eram de coronelismo, beatos, rendeiras e cangaceiros. Nos sertões místicos e quentes do Nordeste, o cordelista cresceu. Viveu entre cantadores e cordéis que retratavam não apenas a vida dura do sertanejo, mas também os horizontes de beleza e brabeza de homens do Sertão, que contrastavam com os “neurastênicos do litoral”, como escreveu Euclides da Cunha em Os Sertões.

Naquela época, as opções para quem não descendia de família tradicional eram poucas: - Ou era cordelista, ou vaqueiro, ou amansador de potro, cantador de viola, topador de touro, matador de onça ou cangaceiro. Trabalhei no pesado. Papai me ensinou de tudo: quebrei pedra, arranquei toco, fiz cerca de pedra; fui bom cavador de terra pra vazante, apanhador de algodão, trabalhei na enxada; fui limpador de mato, também corri muito a cavalo. Só não fui cangaceiro -, orgulha-se.

Mas foi o cangaço a maior fonte de inspiração de Zé Saldanha. Aos oito anos de idade, quando de viagem ao município de Souza, na Paraíba, o pai do cordelista, Francisco Saldanha, conhecido como Chico do Piató, soube da chegada do bando de Lampião à cidade: “Mesmo informado que Lampião vinha só visitar um amigo, meu pai quis arredar o pé. Ele dizia: quando tem polícia e cangaceiro juntos o rebuliço é grande. E não deu outra”. Já estava de malas prontas para subir no cavalo e voltar para Santana dos Matos, quando Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, aproximou-se.

“Vinha cercado com quatro homens do lado esquerdo, outros quatro do lado direito e outros mais na frente e atrás. Ele vinha no meio. Colocava a mão num bisaco azul, enchia de moeda e jogava pros meninos da rua. Morria de achar graça com eles brigando pelo dinheiro. Passou por mim, olhou, mas não disse nada. Quando chegou a Catingueira foi pipoco de tiro. Morreu um soldado, depois dois, outros foram caindo e ele tomou conta de Souza. Fez o que quis na cidade”, relembra.

Embora seja inegável a predominância da subcultura cangaceira e do “rei do cangaço” em sua obra, Zé Saldanha nega que isso tenha a ver com o encontro com Lampião. Ainda em janeiro de 1939, aos 21 anos, o poeta retratou em cordel o fracasso de Lampião em Mossoró, em 1927:

[...] Ataquei Paraíba e Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e Bahia,
Dominei e fiz de tudo o que queria,
Dei trabalho aos soldados de Nabuco.
O governo de lá perdeu o suco,
Procurei um lugar de mais reforço,
Para atacar Mossoró eu fiz esforço,
A viagem foi errada e foi perdida
Fui feliz escapar com minha vida,
Que o chumbo de lá é muito grosso [...]

O poeta-repórter

Pelas veredas e nuanças do sertão de antigamente, o cancioneiro popular levava repentes e cordéis. Não havia fatos ou antecedências que escapassem dos escritos ou das cordas de viola. “O cordel era tão importante no meu tempo que vivia por dentro das escolas, das igrejas, das fazendas; era uma beleza. Quando chegava a uma feira, eu era cercado de gente, um festival danado. Era só isso que havia!”, recorda Saldanha.

Era nas feiras sertanejas onde o interiorano tomava conhecimento do mundo que o rodeava. Os cordelistas e cantadores eram os porta-vozes das notícias. Ao declamarem seus costumes, alegrias e carências, perpassando por temas como política, religião ou a dramaticidade do cotidiano, sedimentavam valores e perpetuavam, em palavras escritas ou faladas, a história do Nordeste. As lendas, mitos e aventuras, próximas ao realismo fantástico, retratavam o imaginário nordestino. Era na feira livre onde o nordestino, ilhado pela precariedade do transporte e do destino, se divertia e se informava.

Se a vocação de poeta sertanejo já lhe era assegurada, a profissão de repórter surgiu por acaso. “O cordelista é cheio de dificuldade atualmente. Quando comecei a escrever, o cordel era a notícia. Ganhei até o nome de poeta-repórter nas feiras. Se eu escrevia à noite, pela manhã já tava na tipografia pra ser vendido”. Zé Saldanha lembra que ao migrar com sua família para Currais Novos e trabalhar na indústria, presenciou um desastre de ônibus que matou 25 pessoas.

- Quando eu soube peguei o papel, a caneta e saí escrevendo quando ainda tinha gente estirada pelo chão. Do mesmo jeito aconteceu em Cerro Corá, quando um carro entrou por acidente num açude. Logo tomei nota, traduzi pra verso e no outro dia foi publicado. O jornal do interior era o cordel. Mas aí apareceram o jornal, a revista, o rádio, a televisão... A mocidade não olha mais o cordel. Agora fica envolvida nessas novelas, que aparece o povo se agarrando.

Quando recorda os tempos de prestígio dos cordéis, produzidos ainda em folhas de papel-jornal, presos em barbantes nas barracas das feiras, Zé Saldanha lembra também do seu tempo de “menino-moço”. E sente saudades:

Na minha época passada
Namoro foi sacrifício;
A moça num edifício
E pelo pai vigiada
Pra poder ser namorada
Pedia licença aos pais
Hoje a moça e o rapaz
Vão se abraçar, se beijar
O mundo só veio prestar
Quando eu não prestava mais.

Industrial cordelista

Embora o poeta se valha da vocação de jornalista pra retratar fatos em poesias, conta que sustentava a família de oito filhos trabalhando na indústria. Mas tudo começou ainda pequeno, na fazenda do pai, em Santana dos Matos, quando o poeta iniciou-se nos versos, e naquela que bem representa as artes plásticas do sertão nordestino. “Comecei a escrever cordel e a fazer xilogravura ainda criança. Eu fazia um quadrado na tábua e saía abrindo com o canivete, moldando o desenho conforme o escrito. Fui o primeiro xilógrafo do Seridó”.

Da meninice Zé Saldanha guarda boas lembranças. Mesmo a trabalhar pesado no roçado com o pai, “puxando gado, sendo vaqueiro ou matuto”, o sertão era seu tesouro íntimo, sua casa. Lá mesmo em Santana dos Matos, paralela à atividade da escrita, o cordelista começou a fabricar sapatos. “Vendi muito calçado, durante mais de 30 anos”.

O segredo do sucesso dos sapatos fabricados por Saldanha é fácil de explicar: em cada caixa de sapato, uma propaganda em versos: “Sendo pra comprar calçado/eu aviso aos meus fregueses/eu ando de pé descalços semanas, dias e meses/fico até de pé rachado/porém só compro calçado na fábrica Menezes”. Embora Zé Saldanha diga que “vendia não pela poesia, mas porque era um calçado bem-feito, polido.”

Nesse intervalo, entre a fabricação de calçados, trabalhos em cordel e no roçado, Zé Saldanha casou-se com Joselina Dantas Saldanha, com quem teve oito filhos. Mesmo casado, Saldanha continuou a morar na fazenda Piató. O contato com cangaceiros era constante. “Eles apareciam armados pra pedir comida. Meu pai preparava o prato, mas não perguntava nome, pra não dar intimidade”.


*Este texto foi publicado numa versão ampliada na Revista Preá, n. 13, jul./ago. 2005, p. 12-16.


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