Quase deuses, de Joseph Sargent

Por Pedro Fernandes



O ano é 1930. A cidade é Nashville, Estados Unidos. Tempo e lugar de segregação racial. Como pano de fundo sobre a questão negra, está a figura de Vivien Thomas, que como todo negro servia aos mandos e desmandos do branco e está condenado a ser um portador de profissões de pouca significância; ele é um hábil marceneiro com sonho de fazer medicina.

Com um nome feminino porque sua mãe achava que teria uma menina e, quando nasceu o menino, não quis mudar o nome escolhido, num país também assolado pela Grande Depressão de 1929, Thomas encontra-se desempregado e vê o pouco dinheiro que juntava há sete anos para um dia realizar o sonho pelos seus próprios méritos. Claro, estamos também numa terra que atende pelo nome de meritocracia como o modelo ideal de qualquer um chegar ao topo.

Só até aqui nesse parágrafo o leitor já terá encontrado uma quantidade diversa de temas caros explorados pela obra de Joseph Sargent: o contexto histórico de degeneração do capital, a segregação racial e a falsa ideia de que pelo próprio mérito qualquer um pode alcançar seus sonhos.

Depois de sair da oficina de marceneiro, Vivien consegue emprego de faxineiro com o médico Alfred Blalock, quem depois de angariar o posto de cirurgião-chefe na Universidade John Hopkins, dedica-se à pesquisa sobre novas técnicas para cirurgia cardíaca. Blalock logo descobre no empregado uma inteligência privilegiada e que poderia ser melhor aproveitada. Os dois acabam fazendo um parceria incomum e às vezes conflitante, afinal é do esforço e dedicação extremada de Vivien que vem toda possibilidade de conhecimento aprendida pelo médico numa longa carreira de estudos.

Joseph Sargent utiliza, assim, duas personagens de formação e meios totalmente distintos, mas alinhadas numa característica, a de se dedicarem com profundo interesse e, claro, terem amor pelo que fazem. Apesar de não se dedicar diretamente ao tratamento sobre a questão racial, o tema não se constitui em mero pano de fundo, mas em elemento principal da narrativa; paira como se o diretor quisesse dá um tapa com luva de pelica na cara da hipocrisia estadunidense, como se dissesse, eis um exemplo de quanta gente com essa capacidade esse país perdeu apenas por uma querela sem fundamento, a raça.

Ao dedicar-se como um perfeito autodidata Vivien mergulha no sonho do médico em alcançar uma possibilidade de resolver, dentro das limitações e da implicância de seus superiores, um método cirúrgico eficiente para cardiopatias. Nesse ínterim, o diretor toca noutra polêmica: a necessidade de reconhecimento dos esforços de Vivien, apenas uma sombra por trás da imagem grandiosa de Blalock: isso ficará claro quando a narrativa se estende até aos dias quase finais da vida de Vivien quando recebe o título de Doutor Honoris Causa em reconhecimento ao seu trabalho.

Belíssimo filme que vem recuperar no espectador a necessidade de nunca desacreditar dos sonhos e de lutar por eles; mas, uma acutilada de Sargent: não é apenas pelo mérito (a persistência aliada ao talento que se fazem as molas propulsoras para o alcance das metas por nós estabelecidas); é preciso, sobretudo, que alguém em melhor condição aposte na nossa capacidade. Olhando para o contexto brasileiro atual, não dá para deixar de refletir sobre a urgência que o Estado tem em buscar repor aquilo que foi negado a uma grande parte da sociedade.


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