Por que ler?





1. Ao confeccionar frases pela leitura para a página do blog Letras in.verso e re.verso para o Facebook (o álbum com todas as publicações pode ser acessado diretamente aqui – a arte não é minha, adianto) dei-me conta que, antes de qualquer coisa, num mundo cujo os pequenos gestos estão cada vez mais caindo em desuso, reafirmo o que já disse outras vezes: ler, como um desses atos simples, é um ato revolucionário. A sede de hoje é pela escrita; todo aspirante a leitor quer ser um escritor e, 99,9% deste todo, perde-se porque esquece que antes de chegar ao segundo patamar tem de construir o primeiro com bastante primor. Não é suficiente apenas ser um construtor de trocadilhos, ter boas ideias ou mesmo ser Best-Seller. As listas de mais vendidos estão aí para comprovar que todas essas possibilidades falham diante da responsabilidade que é o manejo da escrita. A estes, não há recomendações que não comecem pela máxima: leia mais.

A necessidade da leitura é ainda maior quando saímos do universo literário por um pequeno instante e caímos na malha das redes virtuais: nesse universo, onde a forma de comunicação mais comum é pela atividade da escrita, e onde todo mundo manja de alguma coisa, não custa notar desde os atropelos linguísticos à visão reduzida sobre determinados assuntos que se multiplicam numa quantidade sem fim de frases feitas em avalanche de banners (essas imagens com frases) só reforçando que “onde todo mundo manja de alguma coisa” é apenas produto de uma cultura a qual chamo de “achismo”.  Nela, todo mundo se acha sabedor de tudo, mas pela ausência de leitura é incapaz de assumir uma postura coerente sobre e quando questionado por alguém que de fato manja alguma coisa tende a excluir da conversa como se questionar fosse proibido.

Já deverão ter notado por essas duas constatações o extenso número de sérios problemas que se formam pela simples falta de leitura: uma compreensão errada que leva a disseminação de ideias erradas que educa pessoas por ideias erradas e incapazes do diálogo franco – única possibilidade de alguém construir alguma posição frente a qualquer questão. É evidente que isso é visto como algo passageiro, uma fase, assim esperam os otimistas, e eu, mesmo não sendo otimista, prefiro acreditar em coisa do tipo, mesmo vendo que há algum tempo esta mesma máxima era repetida em relação à TV e não se cumpriu. As mídias vão projetando excessos de confiança nas pessoas que as imobilizam, na grande maioria dos casos, a sair desse lugar de conformismo, para ver o que está por detrás de determinadas questões.

E novamente: para fazer frente a isso tudo, ler é um ato revolucionário. E a compreensão pelo verbo ler não pode ficar retido à condição que preguiçosamente temos alcançado nos índices de avaliação que medem nossa capacidade de leitura e, ano após ano, o que têm confirmado é sim a incapacidade. Isso porque em tantos anos desde quando existe a escrita – condição posterior a da leitura – ainda sequer conseguimos ler qual o sentido de um factoide ou quais implicações para as coisas ditas serem realmente tais e quais são ditas. Evidente que se incluem questões de ordem para além da antropologia; ler é um processo, uma faculdade alcançada através de um procedimento que, já no advento do capitalismo o privatizamos e demos o nome de alfabetização. A coisa se complica quando percebemos que alfabetizar não é suficiente para uma que alcancemos o status adequado de leitura.

E não é apenas porque o gesto da leitura tem se tornado escasso que ler é um ato revolucionário; o sentido revolucionário do gesto antecede o nascimento da escrita, porque foi pela leitura que o homem compreendeu-se enquanto sujeito diferenciado na natureza. E desde então o processo tem se tornado sofisticado o suficiente a ponto de sustentar tudo o que nos cerca. Diria que hoje vivemos num estágio em que a leitura tornou-se fundamental porque alcançou o limite da necessidade. Sem leitura estamos fadados a não apenas que ter uma visão de mundo de curta distância, mas incapazes de uma participação plena na sociedade.

2. Para além de qualquer importância política e social, ler parece ser um dos motivadores maiores e por isso um motor em estado pleno favorável à nossa própria existência. Ler renova sempre de maneira diferente nossa relação com o mundo. Tem o poder de que não apodreçamos na bestialidade e na mesmice. 

Antes de me tornar um leitor assíduo – fato que só veio acontecer muito tardiamente devido a situações que esclareci certa vez num texto que apresentei num desses congressos e que depois foi integrar as páginas de um livro* – a única coisa que me convinha era os meios midiáticos eletrônicos que chegaram lá por casa muito  tardiamente, mas veio ocupar parcela significativa do meu tempo, movido por uma força qualquer a que já até aprendemos a tratar por vício. Nos domingos restava-me, além disso, o encontro com a família e amigos para as tradicionais missas semanais. No meu caso, para além de ter sido um ato revolucionário porque me permitiu outra visão do mundo para além desse lugar paralisado foi também um meio pelo qual pude questioná-lo para aos poucos abandonar o comum para ser alguém que – dia a após dia – tem buscado saber de si, do que lhe rodeia e a ser tolerante com o outro. Os tais meios tornaram-se obsoletos, a mídia e a religião, porque não demorei a perceber às engrenagens que esses dois meios se beneficiam para acachapar consciências  e exigir de forma indireta que tudo permaneça no mesmo lugar, que as peças nunca mudem, que tudo se repita ad infinitum.

A leitura é também um espaço de alteridade pelo qual, experimentando outras possibilidades de ser, experimentamos  o gesto de respeito pelos limites nossos e alheios. Isso a que demos o nome de educação. Se alguém toma da leitura pelo efeito colateral, o de ultrapassar o limite da simplicidade pelo o da arrogância, a culpa, pode escrever, não está nos livros, está no leitor. Porque lemos para nos renovar perante o mundo, tentarmos alcançar o lugar perdido de nós, a resposta para o porquê das coisas. Por mais alto que alcancemos pela leitura, ela sempre nos alertará da condição reduzida nossa perante o universo e isso é suficiente para que status como arrogância não crie raízes. É evidente que já estou noutro território da leitura; deixei o caminho mais amplo pelo qual me guiei a princípio para pensar especifidades. Avançadas quatro, cinco linhas e já o leitor entenderá que espaço específico é este.

Quando penso que o grande golpe dos meios cerceadores da lucidez e da visão – que é dado pelo poder simbólico dos discursos sectaristas – é o de ofuscar a capacidade da razão humana de se interrogar sobre as coisas, a ponto de que permaneçamos incólumes repetindo o sempre o mesmo ao limite que a vista alcança (o limite do nosso próprio umbigo) noto na leitura a capacidade de nos restaurar à idade da origem do homem, em que o ato da curiosidade, foi capaz de construir de desencadear tudo o que construímos. 

Já agora, perto do fim, quero recuperar que a única via possível para que o homem dê meia volta ao processo de loucura e de cegueira a que temos dia-a-dia sucumbido pela reinvenção dos discursos de flagelação do outro propagados pela mídia, pela política e pela religião, três dos discursos sectaristas, a única via possível está na literatura. Reconheço que pela literatura somos capazes de nos encontrar com um mundo, se não melhor, ao menos capaz de responder sobre a ordem escondida da sociedade em que vivemos – ordem que diariamente demonstra seus sinais quando fagulhas de nosso discurso de ódio são transformadas em ações para suplantar a felicidade alheia. A leitura tem a grande utilidade de não me fazer um inútil; e essa certeza é o que nos faz crescer; nos faz ver o mundo além das aparências, a enxergar o nascimento das zonas obscuras da realidade e porquê as coisas são como são; ler não tem a grande vantagem de nos fazer melhor, tem uma vantagem superior a isso, que é o de compreender o que nos faz melhor. E isto também não é revolucionário?


* O texto a que me refiro é intitulado "Sobre Literatura e ensino: considerações à procura de um sentido ou o encontro dos termos" e está no livro Ensino, pesquisa e formação de professores de Língua Portuguesa e de Literatura organizado por eu, Maria Lúcia Pessoa Sampaio e José Cezinaldo Rocha Bessa e editado pelas Edições UERN.


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