Cada homem é uma raça, de Mia Couto

Por Pedro Fernandes




Enfim, tantos anos depois que o escritor moçambicano circula pelo Brasil, não só fisicamente, mas pela sua obra, já há muito editada pela Companhia das Letras, é preenchia uma lacuna na sua produção literária por aqui. É que, mesmo não sendo um leitor assíduo da obra de Mia Couto e mesmo fazendo ressalvas para alguns de seus trabalhos, sobretudo o romance último publicado por aqui, A confissão da leoa, tenho acompanhado de perto o crescimento da rede de leitores ou simplesmente admiradores de seu trabalho. É um feito raro para um escritor africano. Há muitos que circulam por aqui e que têm uma expressão literária além da do autor de Terra sonâmbula, mas que não têm a mesma aceitabilidade. Falo isso pensando em nomes como Pepetela e José Craveirinha, dois que trago na minha lista de leituras.

Mia Couto, entretanto, terá escolhido uma linha tênue entre a forma estética e a capacidade de se aproximar de questões um tanto mais corriqueiras do dia-a-dia comum. Noutras palavras, seu intuito tem se concentrado em do seu universo particular, aquele que diz respeito às muitas Áfricas presentes em Moçambique e fazê-lo universal. Não se propõe nem a uma renovação estética nas literaturas de língua portuguesa porque já tem no uso diferenciado da língua essa condição e nem se dedica exclusivamente ao comezinho, que se assim fosse corria o risco de descambar em definitivo para territórios mal pisados pela literatura barata, aquela que é tudo, menos arte.

Agora, uma verdade há que ser dita, talvez Mia seja mesmo o escritor de um romance: Terra sonâmbula e nada mais. Mas, como contista ele é exemplar e talvez os outros romances seus seja apenas isto, contos que se desenvolveram demais e se perderam. Prova está num livro que comentei por aqui numa série a que denominei “Miacontear” e que era a leitura passo a passo de O fio das missangas (os posts estão todos aqui). E agora se soma a mais um caso aos olhos do leitor brasileiro com a publicação desse Cada homem é uma raça.

Editado em Portugal já no início da década de 1990, aí se reúne ainda o vigor da sua escrita e de sua invenção. Por isso, ser também esta edição uma vez publicada por aqui um preencher de lacuna. Especializado em condensar almas humanas sob forma de literatura, o contista encontra-se com uma nova série de indivíduos e faz de suas histórias de vida uma poética multiperspectiva do sujeito e suas feições na contemporaneidade, que talvez essa seja a maior inquietação do escritor contemporâneo.

Ao todo são 11 textos: “A Rosa Caramela”, “O apocalipse privado do Tio Geguê”, “Rosalinda, a nenhuma”, “O embondeiro que sonhava pássaros”, “A princesa russa”, “O pescador cego”, “O ex-futuro padre e sua pré-viúva”, “Mulher de mim”, “A lenda da noiva e do forasteiro”, “Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu” e “Os mastros de Paralém”. Essa denominação já deixa vislumbrar para o leitor a boa forma de reinventar a língua pela aproximação entre a prosa e a poesia, responsável ainda por uma ‘melodização’ muito própria da narrativa que a reaproxima do gesto primitivo das narrativas orais.

Um exemplo desse trabalho são os recortes a seguir, feitos aleatoriamente no livro:

Nos jardins, ela se entretinha: falava com as estátuas... Fez-se irmã das pedras, de tanto nelas se encostar (A Rosa Caramela);

Fixei o céu, procurando Deus. Mas eu não tinha vistas para tão longe. (O apocalipse privado do Tio Geguê)

... desde que enviuvou, ela desentreteu, esquecida de ser. (Rosalinda, a nenhuma)

Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. (O embondeiro que sonhava pássaros)

...a fome começou a fazer ninho em sua barriga. Decidiu lançar a linha, já sem esperança: o anzol carecia de isco. E ninguém conhece peixe que se suicide por gosto, mordendo anzol vazio. (O pescador cego)

…o mundo é grande, mais completo que coisa cheia. O homem se acredita muito enorme, quase tocando os céus. Mas onde ele chega é só por empréstimo de tamanho, sua altura se fazendo por dívida com a altitude (Os mastros do Paralém)

Todo o deslumbramento que está na superfície daquele O fio das missangas se verifica neste livro: estão aí os seres postos à margem de tudo, com seus dramas aparentemente fora de órbita, quase a beira de tragédias; as situações de submissão da mulher num mundo cujo interesse está sempre em escravizar-lhe o corpo e a existência, como é caso em “A Rosa Caramela”, em que o leitor fica em frente aos dissabores de uma mulher corcunda que enlouqueceu depois de ter sido abandonada no dia do casamento, ou ainda “A princesa russa”, em que a mulher distante de seu país de origem é obrigada a aturar as hostilidades do marido; também está em cena, o caráter mágico e quase fantástico, como nos “A lenda da noiva e do forasteiro” e “O embondeiro que sonhava pássaros”; ou ainda a verve político-social em “O apocalipse privado do tio Geguê”, narrativa situada num tempo posterior ao da luta pela independência e que fala da terra moçambicana a partir de um objeto insignificante, uma bota encontrada pelo tio do narrador, ou “Os mastros de Paralém”, que também situado nesse mesmo instante histórico põe o leitor em contato com os diversos sentimentos e situações do longo processo que foi a retomada de Moçambique da mão dos colonizadores: a dor, o pesadelo, a injustiça, a fome, a miséria, a escravidão, uma leva de memórias  e sentimentos rigorosamente retrabalhados pelo narrador.

A pluralidade do tecido de Cada homem é uma raça – apesar de reiterar lugares já em processo de decantação na obra do contista – faz esse livro ainda assim único na tábua bibliográfica de Mia Couto. Precisamente porque, está uma tentativa de perquirir a construção de um lugar que não é apenas o dos primórdios de Moçambique, é uma exploração tateante da própria gênese do mundo interceptada pela natureza humana e sua relação umbilical com o lugar de pertença e o confronto com as refacções dessa relação e dos lugares. Está, portanto, localizado entre um dos títulos fundamentais da produção literária do contista moçambicano indispensáveis à leitura.

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