Um diário inédito de Alejo Carpentier é publicado em Cuba



Alejo Carpentier era um homem meticuloso e capaz de acumular uma prodigiosa informação enciclopédica que logo levava para sua obra. O romancista e musicólogo cubano anotava tudo o que via, ouvia e lhe chegava através de sua cosmopolita vida, estivesse em Paris, Caracas ou Havana. De fato, vários estudos sobre sua obra narrativa têm apontado esse rigor documental que logo se transformava em estilo artístico. Faltavam os diários publicados agora pela Fundação Alejo Carpentier que revelam suas angústias e preocupações durante o processo de criação literária. Um encontro que permite assistir a parte do traço criativo de obras como O século das luzes, Os passos perdidos, A perseguição e O caminho de Santiago ­– este último ainda sem tradução no Brasil.

Também se sabe que Carpentier estava organizando parte de sua correspondência cronologicamente com a ideia de publicá-la em forma de diário epistolar, empenho que deixou em suspenso devido sua morte. Esta edição agora publicada como Diário, talvez contenha ainda a rotação das chaves de acesso a sua obra, sua imersão, por outro lado frustrado, numa épica política que cantou desde um espartilho tão artificial como evidente.

De qualquer maneira, o resultado surpreendente é que estes cadernos se mantiveram guardados dentro da extensa quantidade de papéis de Carpentier, já muito estudada e classificada, ao ser o único escritor cubano, além de José Martí que conta com uma instituição própria dedicada exclusivamente a este trabalho. Enquanto viva, sua viúva Lilia trouxe a lume vários inéditos de outro caráter, literário ou ensaístico, mas não algo tão precioso, íntimo e revelador como estes textos agora publicados. Pode especular-se sobre o zelo com que ela reservou para estes textos, em postergá-los para um tempo em que as testemunhas oculares e diretas que podem aparecer aí citadas já não mais estivessem no reino deste mundo.

O Diário consta de 149 entradas sobre o dia-a-dia de sua estadia na Venezuela entre 1951 e 1957. Os textos estão escritos na máquina e com notas feitas à mão ora na margem ora em  correções. Para a diretora da Fundação, Graziella Pogolotti, se trata de um “convite à leitura de Carpentier, ao redescobrimento de sua obra a partir das pistas que esta confissão parcial – como todas as confissões – nos dá sobre suas buscas e suas inquietações.”

O autor do prefácio de Diário, Armando Raggi, explica que o texto descobre o tortuoso processo criativo de Carpentier, suas dificuldades editoriais, os períodos de pouca produção criativa, sua ocupação na publicidade no rádio e na televisão, passagens enigmáticas e episódios de sua estadia em Paris entre 1938 e 1939, assim com seus frequentes sonhos e pesadelos.

Ao relembrar detalhes do texto, Graziella Pogolotti analisou que em 1951 quando Carpentier está começando este diário “responde à pressão de uma necessidade interna num momento de crise singular”. “Necessita encontrar um interlocutor, uma espécie de espelho em que ele se reconheça e explore uma vez mais o lugar onde se encontra, naquele momento estava terminando a elaboração de Os passos perdidos, um romance que significou uma reviravolta em sua obra.”

“O ler um diário como este podemos perceber até que ponto na obra de um escritor está sua experiência, sua vida”, lembra Pogolotti ; “tem de tudo, elementos anedóticos, de algum modo as mulheres que passaram por sua vida” e também estão “alguns amigos e amigos que deixaram de sê-lo”.

Atualmente a Fundação segue um plano de publicações críticas de sua obra: já concluiu textos como Ecué-Yamba-Ó e trabalha agora em Concerto barroco e tem perspectivas para A harpa e a sombra, seu último romance publicado, em que faz um retrato eloquente da solidão de um pontífice frente à suas decisões transcendentais. Para esse fim, fica assegurada a disposição da documentação essencial e a biblioteca pessoal do escritor que conta com mais de 4 500 volumes, um tesouro para dar a conhecer.  


* escrito como tradução livre para o texto de Roger Salas para o jornal El País.

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