"A caixa", uma poética da vida e da obra de Günter Grass

Por Alfredo Monte



Em 1998, maravilhado com a riqueza mirabolante da narrativa de Um campo vasto (1995), como acontecera tantas vezes na leitura do  recém-falecido Günter Grass (O tambor, 1959; Anos de cão, 1963; O linguado, 1977; A ratazana, 1986), eu terminava uma  resenha, para a “A Tribuna” de Santos, afirmando peremptoriamente: «justiça seja feita e que Grass seja o próximo Nobel»; desejo pessoal metamorfoseado em vaticínio: no ano seguinte, ele foi anunciado como vencedor do prêmio, devido à «enorme tarefa de rever a história contemporânea lembrando os despojados e esquecidos, as vítimas e os perdedores, e as mentiras que as pessoas querem esquecer porque um dia acreditaram nelas».

Na década seguinte, Nas peles da cebola (2006) representou uma reviravolta na reputação do escritor alemão. Ali se revelava alguém que, afinal (tardiamente, decerto), não queria se esquecer da mentira em que um dia acreditara: quando jovem, pertencera aos quadros da hierarquia nazista. O mal-estar geral e a desilusão (Grass há décadas detinha o status de “consciência crítica” de sua nação) empanaram o desassombro e lucidez desse livro de memórias.

Vindo na esteira de obras enormes, “cósmicas”, por assim dizer, e da igualmente alentada e desnorteante autobiografia, A caixa (2008) parece, à primeira vista, um projeto mais modesto, um romance “pequeno” em tamanho e ambição. Ledo engano. Trata-se de uma encapsulada “poética” da vida e da obra de Grass, contrapartida (e complemento cronológico) lúdica de Nas peles da cebola, onde líamos que, nas estórias, as coisas «se passam de modo mais factual do que na vida real».



«Possivelmente também nós, do jeito que estamos sentados aqui e conversando, sejamos apenas inventados... Isso ele pode,  e isso, na verdade, ele domina muito bem: inventar, imaginar, até que tudo se torne realidade e inclusive projete sombra», diz um dos oito filhos1 (com mães diferentes) do velho escritor, às vésperas dos oitenta anos, reunidos com a missão de, entre seus compromissos pessoais, em refeições fartas em lugares e momentos variados (por exemplo, «Depois de comerem com gosto o gulache de cordeiro, eles vão sentar na sacada com vista  para o pátio interno e para o terreno vazio de uma escola ao anoitecer...»), fazer a crônica familiar, do que representou para cada deles ter tal pai famoso e polêmico (atacado pela direita e pela extrema-direita), vivendo em diversas casas, com a vida do clã pontuada por grandiosos projetos autorais acalentados por anos e anos até o aparecimento de um Livro (assim, com maiúscula, pela amplitude e repercussão). Mas como toda reunião, mesmo a das pessoas mais próximas e íntimas, o que deveria ser um arsenal de reminiscências em comum fratura-se com as percepções diversas de cada evento, com os ressentimentos que afloram, com as revelações inesperadas, com o fato de que, mesmo numa tapeçaria familiar inconsútil (e com a sombra de tal pai), cada qual tem sua trajetória irredutível.

E não podemos esquecer do “pai narrador”, a instância por trás de tudo, que “quer que seja assim”: «Coisas que não foram ditas pairam no ar. Só vagarosamente os irmãos tomam o rumo das confusões de sua infância, falam retroativamente, ora se mostrando animados, ora de mau humor, e fazem questão de continuar se mostrando feridos, magoados. Porque o pai deles quer que seja assim...»; ou mais adiante, em outra toada: «Agora o pai não sabe o que fazer: apagar o que está escrito? Encontrar algo mais inocente para substituir o que foi dito e impedir que alguém fique magoado? Ou prolongar a briga? Ou insinuar, contra a vontade dos filhos, em orações subordinadas, qual é a erva que os dois fumam em segredo, até porque o cheiro...»2

Essa feição narrativa (desdobramento de colóquios, em diversos encontros) já é emaranhada por natureza. Mas há ainda a caixa do título, a máquina fotográfica utilizada por Marie3, presença onipresente na família (alguns desconfiam de que era amante do pai) durante décadas, ajudando o escritor em sua obsessão de tornar vivo o passado em suas obras («E de qualquer modo só ficou claro, sé que um dia ficou, apenas bem devagar, que ele precisava das fotos para poder imaginar como tudo era no passado. É assim mesmo com nosso paizinho: vive só do passado, e continua vivendo assim. Não consegue largá-lo. Precisa voltar sempre de novo...»). As fotografias da irascível e indomada Marie, que só sobreviveram no pensamento mágico coletivo da família, tinham o vezo de alterar o real, às vezes mostrando o que já não existia mais, às vezes antecipando o futuro, contudo sempre trazendo à tona desejos latentes, quando não ranços nunca resolvidos de todo («Mas a câmara de Mariechen não se limitava a realizar desejos, Quando ela ficava com raiva por causa de vocês, ou o vento soprava da direção errada, ou outra coisa a roía por dentro—o grande  dente roedor das recordações que a guerra deixara dentro dela...»). Fotos-estórias, mais factuais do que a vida vivida de fato: «...mas isso aconteceu. Pois tudo o que a velha Marie fotografa com sua caixa da Agfa, mal ela revelava os rolos de filme em sua câmara escura, saía bem diferente da realidade».

E, na sua maestria octogenária, Grass nos brindou com a mais precisa junção de invenção e memória («Ora, mas pouco importa com que foi que ela fotografou. Importante é que acreditamos em tudo... »). A Caixa tanto representa uma ótima introdução à sua obra inigualável, como um encantador e mágico reencontro do leitor habituado ao universo desse gênio da literatura.

Notas:

1 Conforme a biografia de Grass, seis biológicos e dois de uma de suas mulheres. Diga-se de passagem, embora sua obra seja marcada pela homenagem à Mulher (exemplo supremo é O Linguado), esse “feminismo” é ironicamente evocado em A Caixa, onde o designam como “paxá” autocentrado («...porque enfim encontrou uma mulher junto da qual pode terminar de escrever seu livro. Pois isso sempre foi para ele a coisa mais importante... »), e brinca-se o tempo com sua condição “patriarcal” ao ponto de evocar-se o parricídio pela horda primordial (não podemos esquecer também de Cronos, devorador dos filhos, na mitologia): «Devias ter visto na câmara escura dela, como nós, na condição de horda, as crianças, as mães e eu, estávamos sentados em torno do fogo, enrolados em peles, mordiscando raízes e roendo ossos. Um grupo desgrenhado, sempre com as clavas e machados de pedra à mão, de modo que mais tarde, quer dizer, no último filme, quando a fome não terminava, vocês acabaram por pegar o pai de vocês, porque ele era inútil e só ficava contando suas histórias...» (todas as citações de A caixa, no original “Die Box”, são da tradução de Marcelo Backes, publicada pela Record em 2013).

2«Eles não queriam mais seguir suas palavras. A filha, os filhos, se negaram a ser parceiros de suas histórias. “Deixe-nos fora disso”, eles exclamaram. “Mas”, ele dissera, “as histórias de vocês também são minhas, tanto as divertidas quanto as tristes”...».

Em contrapartida:

«__ Não nos resta tanto tempo assim, se quisermos terminar antes de meados de outubro [o mês de aniversário de Grass, nascido em 1927—provavelmente aí se trata dos seus 80 anos].
__ E ainda por cima tudo deve correr segundo as ordens de papai. Ele simplesmente vai nos inventar! —exclamou Nana.
__ E vai botar palavras em minha boca que absolutamente não são minhas—queixa-se Taddei...»

3 Inspirada em Maria Rama, colaboradora de Günter Grass, a quem o livro é dedicado. A caixa poderia ser etiquetado dentro da categoria da “autoficção”, tão em voga. Em uma das caracterizações da personagem ao longo do romance, lemos:

«Ela sempre ficava à parte e, magra como era, parecia um tanto perdida. Parecia sozinha, não triste, na verdade, o que a princípio até teria sido compreensível, mas antes ausente.  “É que eu apenas restei”, ela dizia para mim [...]

Às vezes ela dizia: “Assim são as coisas, crianças, quando apenas restamos. Fica-se parado por aí e não se bate mais muito bem da bola.

Nunca sabíamos ao certo quem era que não batia mais muito bem da bola. Se era ela ou a câmera ou se eram as duas».



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