O escritor está nu: as últimas palavras de Julio Cortázar

Julio Cortázar em Buenos Aires, Argentina, 1973 (detalhe)

Cortázar sentiu muito a indiferença externada pela cena cultural e pelos que compunham o poder oficial quando voltou ao seu país natal em dezembro de 1983. Depois de tantos anos de exílio e já reconhecido ao redor do mundo, esperava outra recepção. A verdade é que, referindo-se ao grupo do poder, um presidente como Raúl Alfonsín – e esse mal das autoridades públicas é coisa de toda a parte do globo – não se dava conta sobre a importância do escritor. Sequer foi recebê-lo. O que lhe salvou da indiferença foram as ruas; os leitores saíram de casa para ir conhecer de perto o filho ilustre. Não pródigo, como certamente terão pensado os do poder. Houve mulheres que levaram flores; houve quem levou livros em busca de autógrafo, livros que às vezes nem eram seus. A recepção do público deve ter-lhe produzido uma sensação de estar em casa.

Omar Prego Gadea – escritor uruguaio e jornalista – não estava entre esses leitores. Mas, mais tarde não deixaria de ir a Buenos Aires apenas dar boas-vindas a Cortázar e conversar sobre seu amigo de longa data; foram dez anos, desde quando se conheceram num vernissage em Paris, na Fundação Rockefeller. Meses antes do retorno do escritor, Prego Gadea conversou duas vezes por semana, de 9 a 12, entre junho e novembro, no escritório de Cortázar, frente a frente, mediados apenas pela mesa de trabalho do autor de O jogo da amarelinha. Nesse período de convivência saiu com uma certeza: “Apesar de seus longos anos em Paris, Cortázar continuava essencialmente argentino”.

Na ocasião, as conversas foram suspendidas justamente porque o escritor fazia seu retorno à Argentina. Iam, antes de colocar um ponto final nelas, proceder uma revisão geral de tudo o que havia sido registrado e ainda iria ser escrito um capítulo especial acerca dessa viagem. Os dois ainda se encontraram numa última vez em 20 de janeiro de 1984. Mas, em fevereiro de 1984, a doença venceu-lhe e Cortázar já não estava mais vivo para cumprir com a conclusão de um trabalho construído à quatro mãos.

Prego Gadea não apenas desconstruiu um território de formalidades em torno da figura do escritor; desenvolveu uma afetividade muito particular, viveu com ele o dia-a-dia mais corriqueiro. Muitas vezes, quando chegava à casa na Rua Martel – num segundo piso, com acesso por “escada de madeira larguíssima e interminável” – encontrava o escritor no café da manhã com Aurora Bernárdez, sua primeira companheira. Durante o último ano da vida de Julio, quando Carol Dunlop, a última companheira do escritor, morreu, Aurora foi viver com ele. Nunca deixaram de ter uma boa relação, ainda que durante largo tempo não tenham se visto. Mas eram amigos e dividiam a casa. Tomavam café os três e logo ela ia trabalhar na Unesco.

edição brasileira de A fascinação das palavras.

Era quando, sós, iniciavam a conversa. Prego Gadea ligava o gravador, a única testemunha sobre o que conversam.  Falaram um pouco sobre a biografia, mas falaram muito sobre os livros. O resultado incompleto, mas não sem sentido pela maneira como foi estruturado, está em A fascinação das palavras, que publicado no início dos anos 1990 em espanhol ganha edição no Brasil tanto tempo depois; tudo, talvez, (e graças a) pelas datas que nos últimos anos vimos lembrando: o cinquentenário de O jogo da amarelinha e o centenário de Cortázar.

Por falar no seu romance mais clássico, parece que o livro cinquentenário foi o preferido do escritor argentino; para se ter uma ideia, há todo um capítulo de A fascinação... que é dedicado à obra. O romance chegou mesmo a passar, já mais tarde, por uma revisão crítica, porque desde que publicado tornou-se uma febre entre os adolescentes. Cortázar não via isso com maus olhos porque sabia que os jovens de então seriam maduros e O jogo ganharia assim um público mais experiente. Foi o que aconteceu. Este, aliás, findou por ser um dos segredos que sustentou o romance entre os clássicos da literatura latino-americana; o livro amadureceu junto com seus leitores.

Mas, Prego Gadea e Cortázar falaram sobre América Latina e política: o escritor tinha um compromisso de apoio a Nicarágua e à Revolução Cubana. Essa postura revela, pois, uma faceta pouco abordada quando se fala sobre o escritor – acusado não raras vezes de ser um apolítico. O próprio organizador de A fascinação das palavras relembra um artigo publicado em 9 de outubro de 1983 no jornal El País de Madri em que afirmava: “Eu me movo no contexto dos processos libertadores de Cuba e Nicarágua, que conheço de perto; se os critico, é por esses processos, e não contra eles; aqui reside a diferença com a crítica que os rejeita desde a base, embora nem sempre o reconheça explicitamente”.

Cortázar pareceu um moderado, entretanto, não um revolucionário. O escritor saiu de sua aterra natal por desacordo com o regime peronista. Ao ver de perto a situação cubana em 1961 e tendo em vista o fracasso da igualdade noutros regimes cuja característica os tinham por socialista, via no regime uma abertura à liberdade, mas gostaria que no poder não fosse desvirtuado dos preceitos que o definiam: a relação de respeito e integridade entre os da comunidade humana.  

Não é apenas o Cortázar escritor ou o Cortázar político, A fascinação das palavras revelam  ainda o Cortázar leitor e o Cortázar em relação com sua infância e seus gostos (o jazz e algumas de suas manias). Isto é, trata-se de um livro que alcança pegar o leitor pela mão e dar a conhecer de perto o escritor argentino; infiltrar-se em alguma parte de sua intimidade ou daquilo que mais o coloca próximo da gente comum. Um escritor é sobretudo isso: pessoa comum. 

Revela-nos uma figura amistosa e amigável; alguém com quem valia a pena encontrar-se sempre para falar sobre tudo. O texto a quatro mãos foi definido por ele como “um livro muito doido”. Mas não. É muito lúcido. E revela-nos, sobretudo, uma fotografia primorosa sobre o escritor que não tinha predileção falar sobre si. Essa intimidade é ainda melhor reforçada quando, entre as confissões, intercalam-se retratos pessoais de Cortázar em fases distintas de sua vida. Para um leitor seu, um título indispensável; para um leitor que não conhece sua obra, uma porta de acesso ao mundo cortazariano.

Ligações a esta post:
No Tumblr do Letras reunimos sete fotografias das apresentadas em A fascinação das palavras.



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