Um itinerário para o Livro do desassossego

Por Cláudia Sousa

Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrevi isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram.

(Fragmento do Livro do Desassossego, composto por Bernardo Soares)




Da epígrafe à referência podemos questionar sobre que livro é este composto “por” Bernardo Soares? Por que não “O livro do desassossego”? Asseguramos que a questão, aparentemente despropositada, nos arremessa para um livro sem fim, sem fronteiras e que não fecha. Desse modo, o artigo definido implicaria toda a intenção para o título dessa grande obra pessoana, que já prenuncia, desde o título, a concepção subjetiva de obra aberta, inacabada, contemporânea.

O Livro do desassossego escapa às classificações comuns, ao mesmo tempo em que nos proporciona o olhar retrovisor para um universo de sensações, através da relação pendular entre sentir versus pensar, amplamente solicitada pela fruição das leituras dos fragmentos nele contidos. Portanto, sua leitura se torna íntima, na esteira das experiências humano-existenciais. Experiência de leitura que está para o exercício expresso por Roland Barthes como o ato de “ler levantando a cabeça”, uma vez que a leitura nos (e)leva pelo movimento que nos faz pensar e não porque a leitura seja desinteressante.

O Livro é composto por fragmentos que vêm constituindo essa obra estilhaçada, ao longo dos anos que sucedem a morte de Fernando Pessoa. A escrita de Bernardo Soares se assemelha a um diário, que foi escrito por mais de duas décadas da vida do autor português, acompanhando-o até ao final de sua existência física. Existência que irradia um período pelo qual o pensamento europeu sofreu crises significativas, tendo-se a segunda metade do século XIX como registro na história. Soares torna-se uma espécie de porta-voz daquela época, ao dizer: “cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século”. Aspectos que podem ser amplamente confirmados por meio das linhas do desassossego, o qual revela que seu autor não se apresenta como uma personalidade plana, mas de temperamento oscilante. Ele é um semi-heterônimo, que assume vários “não-eus”, se confessando múltiplo, disperso, híbrido e, sobretudo, um espelho qual reflete Pessoa, seu multifacetado criador, dando – ao seu fazer literário – um timbre de consciência dessas transformações no pensamento ocidental e busca inscrevê-las ao deslizar a pena que o conduz e, por analogia, passam a ser um reflexo das transformações interiores de um sujeito diante do mundo em pleno vapor de alterações. Dessa forma, o que vemos, também, pelas linhas do Livro do desassossego é contexto de um autor que critica sua época, em tom filosófico e, por vezes, irônico.

O livro é composto “por” Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, porque ele não é o único narrador do desassossego. Através da sua escritura percebemos ecos de outras pessoas de Pessoa e, pela fala do próprio escritor português, entramos em contato com este complexo universo de heterônimos, quando numa famosa carta a Adolfo Casais Monteiro, em janeiro de 1935, disse Fernando Pessoa: “O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que, aliás, em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade [...]”. O semi-heterônimo é um observador que narra o universo ao seu redor, que vai do aspecto simples ao mais abstrato: “Entre mim e a vida há um vidro tênue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar”.

Livro do desassossego


O Livro do desassossego tem passado por várias organizações de edições e reedições dos pedaços de papéis soltos, dispersos e, por vezes, inéditos, os quais passam a compor uma dada edição.  O espólio pessoano vem sendo explorado incessantemente. No que se refere ao desassossego, contamos com a primeira edição, em dois volumes, que se deve ao trabalho exaustivo de Maria Aliete Galhoz, Teresa Sobral Cunha e a Jacinto do Prado Coelho, lançado em 1982, ou seja, quarenta e sete anos após a morte de Pessoa. Desde então, os olhares não cessaram nem sossegaram diante da grande obra erguida a partir dos fragmentos de Pessoa-Soares e, assim, segundo o especialista pessoano Jerónimo Pizarro, o Livro “tornou-se uma espécie de arca em que foram sendo ‘depositados’ novos escritos; era ‘O Grande Livro’, e tudo o que Pessoa escreveu”. Por meio desses escritos, passamos a contamos com um vasto número de edições da obra atribuída a Bernardo Soares, traduzida para vários idiomas. Das principais edições, para além da primeira que foi mencionada, citamos volumes que nos promove uma revisitação ao desassossego, através dos trabalhos criteriosos de estudiosos da obra de Fernando Pessoa, como Jerónimo Pizarro, Richard Zenith e uma nova edição de Rita Lopes. Todas as versões desses especialistas estão disponíveis no Brasil. Sendo uma das edições de Pizarro lançada pelas Edições Tinta da China; Richard Zenith, com as reedições pela Companhia das Letras e a mais recente edição de Rita Lopes, pela Global Editora (ver informações no final do texto). 

Não é demais sublinhar: os fragmentos que vem a compor as sucessivas edições do Livro do desassossego foram deixados por Fernando Pessoa sem uma organização prévia. O próprio Pessoa deixou registros, na tentativa de descrever como se dava a relação entre a sua escritura fragmentária diante dessa obra estilhaçada: “meu estado de espírito obriga-me agora a trabalhar bastante, sem querer, no Livro do desassossego. Mas tudo fragmentos, fragmentos, fragmentos”.

Pensar a grandiosidade do projeto poético de Fernando Pessoa contida no Livro do desassossego, a exemplo, é constatar que ele conseguiu – para elem além da poesia, epopeia, conto, ficção, crítica e teoria literário, dentre outros – manifestar-se através de mais gêneros textuais, a se dizer: fragmento, máxima, e sentenças ou reflexões, mediante textos em prosa e de caráter ensaístico.

Com efeito, o projeto literário pessoano tem sido um manancial para os mais variados tipos de estudos, pois, diante de cada olhar, a obra pessoana se agiganta e promove possibilidades de (re)leituras, num afluxo de inesgotável exploração. Não esquecendo que, em vida, o autor teve apenas um livro lançado: Mensagem. Dado que desperta ainda mais a curiosidade para espreitar esse fenômeno, que validou visceralmente (num movimento que beirava a compulsão pela escrita) o que disse Octavio Paz: “Os poetas não têm biografia. A sua obra é sua biografia.”

Pessoa continua a constituindo biografias, mediante o histórico de heterônimos por ele criados e que hoje já passa de uma centena, catalogados por Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari, Fernando Pessoa – eu sou uma antologia: 136 autores fictícios. Portanto, o autor do livro que não tem fim nos favorece uma incursão pelo itinerário do devir, que navega entre o sentir e ao pensar.

Os livros do desassossego no Brasil

1. Livro do desassossego (Org. Richard Zenith, Companhia das Letras) 

Zenith acresce ao título Livro do desassossego o subtítulo informacional Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Desde quando o pesquisador compôs a organização da obra, várias foram as edições refeitas publicadas por ele depois, sobretudo quando, em 2010, é apresentada em Portugal uma edição crítica do livro e quando é feita a digitalização do espólio de Fernando Pessoa, acontecimento este que terá servido aos pesquisadores na compreensão de uma série de palavras antes indecifráveis; a caligrafia do português não é nem um pouco acessível. O texto proposto por Zenith parece querer demonstrar para o leitor certa sequência romanesca para a extensa quantidade de fragmentos deixados por Fernando Pessoa. Embora a Editora Brasiliense tenha publicado em 1986 uma edição do Livro do desassossego organizada por Leyla Perrone-Moisés, pela maior penetração pública, de natureza quase inédita no mercado editorial brasileiro, a edição de Zenith é certamente a mais conhecida por aqui.

2. Livro do desassossego (Org. Jerónimo Pizarro, Tinta da China)

É a edição melhor acabada. Produzida no interior de um grande trabalho de reorganização da obra de Fernando Pessoa, Pizarro propõe um texto mais enxuto, deixando de fora uma extensa quantidade de excertos que não pertenceria aos planos da obra engendrada pelo poeta português. Além disso, torna relevante o detalhe de que não foi um texto escrito apenas por Bernardo Soares, mas ensaiado ser de outros heterônimos. A organização apresentada busca alinhar-se, portanto, ao que pertence a cada heterônimo e demonstra uma sequência de ordem temporal demonstrando como Pessoa planejava e replanejava uma obra ainda muito distante de ter um fim, ou melhor, talvez o Livro desassossego não seja nem o princípio de composição daquilo pensado pelo escritor.

3. Livro do desassossego (Org. Teresa Rita Lopes, Global Editora)

Apresentado como o livro tal como o autor queria, a edição recupera parte daquilo que fez Jerónimo Pizarro com a obra: preservar a voz dos heterônimos pensados por Pessoa para cada fase da obra. Modéstias à parte, porque, de uma obra incompleta geralmente não se sabe o que, de fato, o autor queria, ainda que tenha deixado esboços do projeto inicial sobre o trabalho, o texto de Rita Lopes é um reforço de que o Livro do desassossego não é uma obra aberta ou um baralho tal como define outros pesquisadores. Aí são preservadas então as vozes individuais do que seriam três reescritas de um mesmo trabalho, a de Vicente Guedes, a do Barão de Teive e a de Bernardo Soares.

Ligações a esta post:
>>> Richard Zenith comenta as diversas possibilidades do Livro do desassossego como romance

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